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A convidada surpresa

A CONVIDADA SURPRESA

Chega. Ela já estava decidida. Queria passar a festa de Pessach como se deve. Sem pão levedado? Será que isso excluía os bolos? Ela não sabia. Era preciso fazer as malas.

Metodicamente tirou toda a roupa, verificou se havia migalhas nos bolsos. Dobrou os vestidos e colocou por cima o novo livro sobre judaísmo que havia comprado.

Durante o jantar, Rachel, a esposa do primo, serviu frango com molho de queijo. Discretamente nossa turista americana separou a salada e as batatas da carne. Na verdade ela se perguntava o que era menos casher: o frango ou o queijo: não sabia nada disso.

Rachel percebera o ardil.

"Eu sei exatamente o que você está pensando, Meu irmão é um grande Rabino em Paris. Não se preocupa com todas essas leis. Prefiro te prevenir: isso não vai levar a nada!"

Não respondeu. Não era o momento de argumentar. Mas informou que ia viajar no dia seguinte.

-     "Mas porque se precipitar?"

-     Quero passar Pessach com os amigos".

-     "E quando é Pessach?"

-     "É isso, eu não sei, mas deve ser nessa época"

Rachel estava com ar de desgosto. Ela não se ofereceu para telefonar para o irmão em Paris para se informar sobre esse tipo de coisa. Ela tinha sido uma "criança oculta". Seus pais não tinham voltado da deportação mas ela e o irmão tinham sido salvos e criados com famílias francesas não judias. Rachel se dizia zangada com D'us.

O marido, Allen, por outro lado, havia estudado "religiões comparadas" na 'Sorbonne'. Era brilhante, intelectual e gostava de expor seus conhecimentos no assunto: "O judaísmo, dizia, começa onde as outras religiões acabam. Todas as religiões tendem a apagar o mundo material para elevar-se para o espiritual. Mas o judaísmo começa com o espiritual e o faz transcender ao mundo material: é a santificação, a sublimação do tempo e do espaço. A concepção judaica do tempo se compara a uma espiral: a história coletiva e individual se repete mas cada vez num nível superior, que inclui o passado mas avança para o futuro etc. ..."

Nossa americana não entendia muito disso salvo que ele escondia com essas sutilezas um certo respeito pela fé dos seus ancestrais. Aliás, uma manhã, ela viu Allen no seu vinhedo provinciano, plantado com milhares de cepas de vinha, contemplando a destruição provocada pela seca. Ela o tinha ouvido e visto se dirigir ao Céu: "Sabes que não creio em Ti. Não posso, é assim. Mas é só porque Tu me destes muito cérebro para pensar. Mas ouve: caso eu esteja errado e Tu existas, então, com tudo o que isso implica, me manda a chuva. Está bem? Não estás querendo me arruinar, não é mesmo?"

Na manhã seguinte, como previsto, ela tomou o trem para Genebra. Estava com muita fome. Mas o que comprar no vagão restaurante? Talvez já fosse Pessach e não poderia comprar biscoitos. Comprou maçãs, laranjas e uma garrafa de água mineral.

Continuou até Munique. Era março de 1972. Alguns meses depois essa cidade seria o foco da atualidade com o massacre de onze esportistas israelenses nos Jogos Olímpicos, que deveriam selar a unidade e a fraternidade do gênero humano ...

Tomou o avião para Nova Iorque. Esgotada e morta de fome, não sabia a quem perguntar se já era Pessach. Claro que não da para perguntar esse tipo de coisa à aeromoça! Dormiu. Ao chegar eram 21 horas.

Havia um taxi que parecia esperar por ela desde a criação do mundo, pensou. Deu o endereço dos amigos M. e E. Moravam numa grande casa de estilo colonial com duas enormes pilastras brancas diante da porta de entrada.

Subiu a escada, colocou a mala no chão e estava a ponto de tocar quando, de repente, a porta abriu. Seu amigo M. tinha na mão uma taça de vinho cheia até o borde. Atrás dele estava sua esposa, que também carregava uma taça de vinho.

Que tipo de piada era essa? Por um longo momento nenhum dos três pôde proferir uma palavra. Finalmente M, pálido como um fantasma, voltou a si.

"O que faz aqui? Você não estava de férias na França?"

"É uma longa história, estou tão cansada. Me digam, quando é Pessach?

"Levaram-na para dentro e a sentaram entre os convidados que seguravam todos uma taça de vinho nas mãos.

Todos estavam tão bem vestidos, a casa cheirava limpeza e as Matsot coroavam a mesa...

Estavam celebrando o Seder de Pessach, tinha aberto a porta para o Profeta Eliahu como é costume e tinham descoberto para sua grande surpresa, uma alma judia esfomeada, material e espiritualmente.

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